Experiências Intersetoriais de Desinstitucionalização: territórios da construção do cuidado em liberdade.

2018 
Este trabalho aborda uma experiencia na gestao estadual da Politica de Saude Mental do RS no periodo de 2012 a 2014, ao nos depararmos com um fenomeno entranhado na maior parte das regioes do estado: o asilamento de pessoas com diagnosticos psiquiatricos em instituicoes de longa permanencia para idosos. Cachoeira do Sul, municipio situado na regiao central do Estado, apresenta um quadro emblematico desta situacao, ao sediar dezenas de instituicoes de longa permanencia para idosos (ILPI), sem alvara sanitario, com centenas de pessoas (em torno de 650) oriundas de cerca de 62 municipios do Estado, cujas condicoes de vida desumanas lembram, sem sombra de duvida, os locais mais terriveis do encarceramento manicomial. Boa parte destas pessoas foram encaminhadas para estes locais por servicos da rede de saude e de assistencia social dos municipios. Nuances desta realidade concernem a uma diversidade de outros municipios do RS, colocando perguntas para as politicas publicas e para a Justica. Em articulacao com o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do Ministerio Publico Estadual, a Secretaria de Estado da Saude estabeleceu, em 2014, uma serie de acoes de desinstitucionalizacao destas pessoas, das quais participamos como gestoras e trabalhadoras de politicas publicas, que envolveram a utilizacao da metodologia do Censo Clinico Psicossocial (CCP) e a articulacao das redes de Saude e Assistencia Social para a construcao de planos terapeuticos singulares de desinstitucionalizacao. O Censo Clinico Psicossocial e uma ferramenta-dispositivo de gestao e do cuidado, utilizado pela Politica Estadual de Saude Mental do RS, que tem por uma de suas funcoes dar a conhecer a situacao de saude e psicossocial de pessoas institucionalizadas sob o argumento da doenca mental, resgatando a historia de vida, as condicoes de dependencia e autonomia para a organizacao da vida cotidiana, as relacoes interpessoais e familiares, mapeando recursos sociais e economicos, com a finalidade de subsidiar processos singulares de desinstitucionalizacao. Estas historias, condicoes e recursos possiveis eram recolhidos no contato direto com as pessoas institucionalizadas, familiares, trabalhadores das instituicoes e das redes do municipio, leitura de prontuarios – que pouco ou nada diziam sobre a vida concreta das pessoas institucionalizadas –, e no acompanhamento do cotidiano das institucionalizacoes. Como ferramenta-dispositivo, em contraposicao a logica tecnicista da aplicacao de questionarios e instrumentos de coleta de dados que primam pela precisao e controle das circunstâncias de seu uso, o CCP operou de forma aberta ao inusitado, permeavel as realidades em que adentramos e dos encontros que ali aconteciam. Nesta logica processual, abriam-se territorios de construcao da expressao de singularidades potentes e silenciadas pelos processos manicomiais. Mesmo pessoas que literalmente nao falavam, constituiram formas de se expressar a medida que a metodologia do censo se modificava para acolher estas diferentes formas de contar historias de vida e de desejar outros futuros. Assim, o CCP operou como um dispositivo deflagrador de processos de interferencias no socius e na producao da vida. As informacoes registradas a partir do CCP deram visibilidade para algo que se camuflava nos laudos psiquiatricos das pessoas institucionalizadas: elas tinham historias marcadas por inumeras formas de exclusao e de violacao de direitos, mais ligadas a estigmas forjados em contextos de preconceito, nos quais os diagnosticos psiquiatricos surgiam como argumentos para internacoes vitalicias, que atendiam aos interesses do mercado da loucura, agora atualizado, na contramao das politicas publicas que foram, progressivamente, ao  longo de uma decada e meia desinvestindo no setor de contratacao de servicos privados complementares. Mulheres com historico de violencia, homens com historia de decadas de trabalho precario no campo no cultivo do fumo, pessoas com deficiencia mental ou fisica oriundas de familias muito pobres, adultos que foram criancas institucionalizadas em instituicoes de assistencia social, onde enlouqueceram, tiveram sua existencia medicalizada e passaram a ser considerados incapazes para a vida em sociedade. Este era o retrato das vidas aprisionadas, sob o argumento da protecao e do cuidado, nas instituicoes irregulares para idosos em que se realizou o CCP. A logica do capital e do mercado produziu naquele contexto uma necessidade de intervencao social e clinica ardilosamente construidas nas bordas das legislacoes vigentes, sustentadas, paradoxalmente, com recursos publicos, oriundos de estrategias para producao de equidade, apoio a cidadania e reinsercao social como o Beneficio de Prestacao Continuada (BPC) e Programa de Volta para Casa (PVC), que eram utilizados para o pagamento das mensalidades dos asilos, pervertendo seu mandato etico, social e politico. Neste sentido, desinstitucionalizar tambem e questao de visibilizar os marcadores de poder dos novos procedimentos manicomiais. O desafio da desinstitucionalizacao se renovava a cada ato, seja quando nos encontramos com os preconceitos de proprietarios e vizinhanca de imoveis que sediariam residencias terapeuticas em implantacao, seja quando funcionarios das instituicoes asilares sob nossa intervencao defendiam com unhas e dentes seus estabelecimentos. O argumento da morte como possibilidade sempre surgia nestes contextos: “se sairem podem morrer”; “aqui e a casa deles”. Proteger a vida biologica era o que interessava: mas qual vida? Uma vida capturada por um dispositivo arquitetonico-discursivo-institucional que massacra a singularidade com a organizacao repetitiva do tempo e do espaco, a captura nosografica, a interpretacao patologizante e o olhar segregador do dispositivo psiquiatrico. Os processos do CCP tornaram ainda visivel o fato de que os trabalhadores das politicas publicas e do direito continuam sendo forjados na logica moral e identitaria, cujo foco e a aquisicao de tecnicas de adaptacao dos sujeitos aos ideais sociais. Refens de seus preconceitos e da imagem congelada de seus parâmetros de atuacao, muitos deles tem medo de ousar apostar no encontro com a alteridade e acabam por reproduzir estereotipos sociais com os quais se defendem das singularidades. Nesse contexto, a interdicao ao dialogo, pela imputacao de uma sobrecarga de tarefas no cotidiano de trabalho e pelo controle dos tempos da atuacao do profissional, se fez presente incontaveis vezes, cristalizando ainda mais as relacoes de saber-poder e hierarquizando suas praticas, o que nos pos a pensar sobre os modos como as prescricoes disciplinares atingem nao apenas os usuarios, mas tambem os agentes das acoes, produzindo efeitos de coisificacao de ambos os lados. Por outro lado, nas reunioes e acoes intersetoriais onde se abordavam os casos de desinstitucionalizacao em andamento, com participacao do Ministerio Publico do RS, percebemos os efeitos formativos destes encontros hibridos de intersetorialidade, na direcao dos atores envolvidos. Espacos hibridos, que colocam em contato saberes heterogeneos, superficies intersetoriais e territoriais que se perturbam, se afetam, produzem ressonâncias, desacomodam, dando suporte a producao de lugares de existencia para o que, em outro contexto, seria facilmente tomado no quadrante do anormal. Nestes itinerarios intersetoriais da desinstitucionalizacao, nao se trata de tomar a experiencia singular no registro dos saberes das ciencias da saude, mas de acolher o ponto em que ela desconstroi os saberes vigentes, ao mesmo tempo que cria novos modos de trabalhar nas politicas publicas. Assim, este relato se constitui como uma forma de documentar um momento crucial da Reforma Psiquiatrica no RS, ao tomar a desinstitucionalizacao das novas/velhas instituicoes asilares como dispositivo de educacao permanente em saude, mas sobretudo busca testemunhar processos de subjetivacao e producao da vida, os territorios do cuidado em liberdade, desmontando o arranjo juridico-assistencial-sanitario e politico que insiste em produzir a morte em vida de singularidades dissonantes sob o argumento da protecao social e do cuidado.
    • Correction
    • Source
    • Cite
    • Save
    • Machine Reading By IdeaReader
    0
    References
    0
    Citations
    NaN
    KQI
    []